Desde que a Lei da Igualdade Salarial foi aprovada, em julho de 2023, o governo federal publicou normativas para regulamentar a legislação. E nós, da Carreira Muller, estamos acompanhando todas as novidades para ajudar as empresas a se movimentarem neste novo cenário.
Afinal, é como diz o Dr. Reinaldo Fernandes, especialista em Direito do Trabalho: “essa é uma quebra de paradigmas, um movimento histórico, que vai mudar totalmente a ideia que temos de sigilo de informações em relação a salários”.
Depois de darmos uma prévia sobre o assunto, convidamos o Dr. Reinaldo para responder a perguntas importantes, ouvir sua visão de mercado e entender qual é o papel das organizações e dos profissionais de RH a partir de agora.
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Entrevista com Dr. Reinaldo Fernandes, especialista em Direito do Trabalho
Antes de tudo, o que tivemos de novidade depois da publicação da Lei da Igualdade Salarial?
A lei 14.611, de julho de 2023, veio para tratar de um problema ainda recorrente no Brasil que é a questão da desigualdade salarial. Aprovada pelo parlamento, ela é curta, com poucos artigos, está mais no âmbito das intenções. Dependia, portanto, de regulamentações que não precisariam passar mais pelo parlamento. Foi quando o próprio governo federal, por meio de seus ministérios, passou a editar normas para regulamentar a lei e dizer como devemos cumprir aquele ideal da legislação. Em novembro de 2023, foram publicados o decreto nº 11.795 e a portaria nº 3.714/2023, que trazem mais clareza, profundidade e detalhes sobre como cumpriremos a lei de igualdade salarial e critério remuneratório.
Como serão gerenciadas as informações salariais das empresas? Em quais momentos ela terá que “prestar contas”?
A portaria 3.714/2023 veio justamente para esclarecer esse ponto. Nos meses de fevereiro e agosto, as empresas vão alimentar o eSocial e o Portal Emprega Brasil com informações salariais e de critérios de remuneração, respectivamente. Posteriormente, o Ministério do Trabalho e Previdência é quem vai gerenciar essas informações. Os relatórios serão divulgados semestralmente — e publicamente. As empresas também terão a obrigação de divulgar esses relatórios nos seus sites e/ou redes sociais. É uma evolução que eventualmente pode gerar uma crise, já que as organizações terão que abrir a tabela salarial e de critérios de remuneração para toda a sociedade — e não somente para os seus empregados.
Quais informações precisam constar no eSocial e no Portal Emprega Brasil?
Em resumo, todas as relacionadas à folha de pagamento: salário por CBO, 13º salário, horas extras, adicionais, comissões, gratificações, entre outras. A portaria deixa claro o cunho salarial das informações.
Isso pode resultar em pejotização ou em pagamentos não caracterizados como salário?
Acredito que as empresas vão começar a pensar sobre isso, já que precisarão alimentar o sistema apenas com informações salariais relativas a INSS e fundo de garantia. Todos os outros benefícios e estratégias sem natureza salarial, como assistência médica, vale-alimentação, curso de pós-graduação, seguro de vida, previdência privada, entre outros, não precisam ser informados. As empresas que não querem divulgar o salário pleno ou que têm problemas com relação a pagamentos de salários diferentes de pessoas terão três alternativas: fazer a correção, “fugir” para pagamentos que não incidem encargos ou trocar empregados por pessoas jurídicas. O sistema não precisará ser alimentado com informações dos prestadores de serviço.
As empresas terão que informar no eSocial a CBO (Classificação Brasileira de Ocupações). Mas esse identificador comum acaba não representando a pluralidade de cargos que existem no mercado. No universo da Remuneração, a CBO inclusive já não é tão utilizada para fazer as comparações. Como vai funcionar?
Sabemos que há discrepâncias entre o mercado e a CBO, mas esse é o único critério que o governo consegue estabelecer para comparar os critérios de remuneração e de promoção — e colocar todo mundo na “mesma régua”. Então vamos ter que nos adaptar e encontrar dentro dos cargos de mercado, com as evoluções características da empresa, o CBO que mais se aproxima do cargo. A informação dada ao eSocial será a do CBO — e não os nomes particulares que as empresas decidem estabelecer.
Hoje, um Plano de Cargos e Salários protege as empresas quando há critérios mais amplos em um grade salarial. A organização consegue explicar, por exemplo, porque um profissional ganha mais que outro na mesma função, devido a critérios específicos para progressão e ascensão (como tempo, experiência, etc.) — e não importa o sexo do profissional. Como isso vai ficar com a Lei da Igualdade Salarial?
Como a portaria separou equiparação salarial de critérios remuneratórios, as empresas também terão a oportunidade de explicar. No eSocial, informará apenas o salário para determinado CBO, já no Portal Emprega Brasil, poderá dizer se tem um quadro de carreira ou Plano de Cargos e Salários, critérios remuneratórios para acesso à progressão e ascensão dos empregados e se há incentivo à contratação de mulheres.
Então vamos imaginar um homem com salário de R$ 5 mil e uma mulher com salário de R$ 4 mil, para uma mesma CBO. Durante o cruzamento dos dados, certamente vai acender uma luz amarela. O ministério pode se convencer de que no Plano de Cargos e Salários o critério remuneratório não é baseado em sexo ou entender que o critério é discriminatório. Neste último caso, ele notifica a empresa para corrigir as distorções.
Se a empresa não tiver um Plano de Cargos e Salários e critérios remuneratórios, fica restrita ao pagamento igualitário entre todos?
Teoricamente, o sistema vai revelar que a empresa está pagando diferente, sem algo que justifique isso. É verdade que a organização não é obrigada a ter um Plano de Cargos e Salários e nem critérios de promoção, mas se o governo encontrar o mesmo CBO com remuneração diferente, ela vai ser autuada.
Em caso de distorções, quanto tempo a empresa tem para se manifestar?
Se o sistema encontrar uma discrepância nas informações geradas pelos sistemas eSocial e pelo Portal Emprega Brasil, a empresa tem 90 dias para apresentar uma resposta. Se não for convincente, a autuação agora está prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Aliás, essa mudança na CLT é um ponto importante. Desde 1943, a CLT já dizia que não poderia haver diferença de salários entre homens e mulheres. Só que não surtia efeito, já que relatórios apontam para uma desigualdade salarial exclusivamente em razão do sexo. Então a nova lei acrescentou um parágrafo no artigo 461 da CLT prevendo multa no valor de dez vezes o novo salário devido pela empresa à trabalhadora ou ao trabalhador discriminado. Tudo indica que essa é uma mudança que realmente veio para ficar.
A Lei da Igualdade Salarial seria mais uma tentativa do governo de equiparar forças entre empregador e empregado?
Sim. O governo brasileiro (assim como há um movimento na Europa) entendeu que o sigilo de informações por parte das empresas é excessivamente oneroso para o funcionário e favorável às empresas. Enquanto a organização obtém todas as informações do funcionário, os empregados já não conseguem quase nenhuma informação da empresa — a não ser o que ela quer fornecer (não conseguem nem saber, por exemplo, quanto ganha o próximo cargo ao qual é elegível).
Essa é, portanto, uma quebra de paradigmas, um movimento histórico: nunca tivemos na história da democracia brasileira a exigência de uma empresa divulgar os dados salariais dos seus empregados. A área pública já passou por essa mudança e agora a área privada está sendo convidada a participar desse processo de democratização dentro das empresas. Sabemos que isso pode ser uma maldição para muitas organizações, que a regra tem uma série de problemas, mas as empresas precisam se preparar para as respostas que virão. Olhando para a legislação e entendendo essa intenção de realmente resolver o programa da desigualdade salarial, acredito que de fato haverá fiscalizações e autuações.
O que muda com relação ao que era feito antes em caso de eventual desnível salarial? E como as empresas podem se preparar?
Antes, se havia um salário diferente entre empregados, a empresa poderia responder a uma ação na Justiça. Mas apenas um número específico de pessoas recorria ao judiciário. Agora, a fiscalização será automática, online e por algoritmo. Ou seja, se a empresa gerar uma informação e não tiver uma explicação adequada, será autuada ou receberá uma notificação para se explicar.
A forma excepcional de explicar é tendo uma política de cargos e salários— seja desenhada com o sindicato, individualmente, por meio de consultoria… O que a empresa precisa ter são critérios não discriminatórios, considerados lícitos pela legislação, que não sejam mal interpretados e nem tragam passivo para a empresa. Então é olhar para a sua folha de pagamento, encontrar respostas para as diferenças de salários, dialogar com o jurídico e/ou a assessoria da área de Remuneração e, muitas vezes, levar a documentação ao sindicato. O RH está sendo levado a compreender que o seu papel hoje já não é apenas pagar salário para o trabalhador ou reter os melhores talentos: vocês estão sendo chamados para a democratização dentro das empresas e precisarão divulgar as informações. Mas, não podemos esquecer que essa nova legislação esbarra em outra, que é a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).
Como gerar informação sem violar a LGPD?
Por mais que o eSocial seja um ambiente seguro, quando a empresa precisar divulgar os relatórios em seu site e redes sociais, corre o risco de expor certos trabalhadores. Por exemplo: se houver apenas um gerente de Recursos Humanos, todo mundo saberá seu salário. Então é preciso dialogar com o jurídico. Se a informação for sensível, talvez seja o caso de propor medidas judiciais.
Por mais que o setor público, empresas de capital aberto e outras organizações (como a Carreira Muller) divulguem os salários, abrir a “caixa preta” da Remuneração ainda é um tabu para muitas organizações — e não é algo cultural no Brasil. Também vemos outro desafio: comunicar isso internamente. Como você acha que as empresas devem lidar com isso?
É verdade que estamos próximos de um período revelador, em que temos dois grandes problemas. Primeiro, a questão jurídica de atendimento a essa exigência; segundo, o viés cultural. Eu, particularmente, preferia que não mudasse a legislação, que o próprio mercado pudesse fazer esse reconhecimento e corrigir a desigualdade salarial, mas temos que ser realistas e pragmáticos: a lei mudou e nós não temos mais o direito de ter sigilo da política salarial nas empresas.
Se o sigilo salarial era um fator de competitividade, converse internamente porque vai deixar de ser. E outro ponto importante é que, se for identificado que a empresa está em desacordo com a lei, ela terá 90 dias para apresentar um plano de correção, que também deverá ser depositado no sindicato. Ou seja, a organização ficará ainda mais exposta.
A maioria das empresas brasileiras com mais de 100 mil empregados (que estão sujeitas à nova lei) ainda são paternalistas, familiares, não entraram na nova era da informatização, do diálogo e da democracia interna. Então precisamos reconstruir esse processo de gestão das empresas, que é o que chamamos de governança, com envolvimento da área de compliance. Assim como aconteceu com a LGPD, essa nova lei pode até estar sendo empurrada “goela abaixo”, mas as empresas têm duas opções: ficar na janela reclamando ou descer e participar dessa mudança.
Qual é a sua escolha?
Ficar na janela é uma opção, mas tudo indica que a lei veio para ficar: vai ter fiscalização, negociação com sindicato, processo judicial… Então, se você preferir participar dessa mudança, vamos juntos!
Aqui na Carreira Muller estamos preparando diversos conteúdos para ajudar as empresas nesse processo – além de termos nossa consultoria à disposição para evitar as autuações.
Ainda está inseguro(a) sobre o tema? Gravamos mais uma série em que o Dr. Reinaldo respondeu questões enviadas em nosso Instagram. Quem sabe sua dúvida não está por lá? Confira aqui: